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O cheiro do ralo, resenha


vb. criado em 14/05/2015, 10h19m.


Não me lembro de ter conhecido outro livro que transitasse tão confortavelmente por vários gêneros (humor, suspense, romance, drama existencial, surrealismo) sem se fixar em um deles e sem se transformar numa mixórdia. A prosa de Lourenço Mutarelli engana, parece modesta, parece simplória. O leitor lê o título, imagina porcaria; folheia o livro, vê que muitas páginas são constituídas de longas sequências de linhas quase em branco, com duas ou três palavras cada, parecendo algum tipo de poema moderno, e já desconfia que aquilo não presta. Depois, vê a sobrecapa com um artista global em destaque, e a expectativa cai abaixo de zero. Mas basta começar a ler para ser fisgado, arrastado para dentro de uma prosa enxuta e ao mesmo tempo barroca, que descreve um mundo que é simultaneamente surreal e de um realismo chocante. Assim é o universo do protagonista d’O Cheiro do Ralo: delirante, estapafúrdio, grotesco, mas ao mesmo tempo fala de sentimentos, aspirações, vícios e fraquezas que são os das pessoas comuns, que identificam na obra o retrato da vida real. Fala, principalmente, de solidão na multidão, e isso o torna realista e inteligível.

Nosso herói é uma figura tocante e revoltante. É romântico e sincero, mas é cruel, cínico, detestável. Sofre e faz sofrer. Não consegue se comunicar com o outro, vive sozinho no meio de muita gente. Sobrevive da exploração das misérias alheias. Busca um pai que não tem, e resolve pateticamente construi-lo, comprando-o aos pedaços de outros miseráveis.

O protagonista do livro tem muitos problemas, mas o central é esse, o ralo defeituoso e o cheiro que exala. Sua vida se centraliza na vizinhança desse ralo, que o obceca.

O ralo é uma mandala. Um ônfalo, ligação entre o “em cima” e o “embaixo”, um portal para o mundo ctônico, subterrâneo (e pelo menos o ralo aqui do meu banheiro reúne três dos quatro símbolos fundamentais: a cruz, o círculo e o centro). Nosso herói percebe o cheiro do ralo como um chamado do mundo subterrâneo, é um miasma que vem do mundo ctônico. Primeiro resiste, mas depois cede a esse chamado, e seu mundo, absurdo já desde a primeira cena, descarrila.

O livro oferece a possibilidade de várias cogitações baseadas nesses símbolos, a mandala, o centro, o ônfalo, o portal que liga o mundo de cima com o de baixo, as possibilidades de se abrir e fechar esse portal, o miasma ctônico e os sacrifícios purificadores, o olho do pai que tudo vê, a perna que não carrega ninguém, a presença do feminino invisível que espreita.

Os desdobramentos da história tornam-se vertiginosos a partir de certa altura. É que, de um ponto em diante, estamos tratando com um homem que tem três olhos, tem um terceiro olho, tornou-se mais que humano. Cirlot (Dicionário de Símbolos, Editora Moraes, 1984) anota que o terceiro olho é sinal de supra-humanidade, de divindade, mas aparece também na mitologia como sinal de destruição, como em algumas imagens de Xiva destruidor. É que um dos significados do três concerne a um ciclo de criação, observação e destruição. Ademais, lembra Cirlot, a multiplicidade de olhos alude à dissociação, à dissolução psíquica, que traz na raiz a idéia do demoníaco. O terceiro olho, assim, faz conexão com o ralo-mandala-portal ctônico.

Por outro lado, se o olho não é do nosso herói, mas do pai, esse pai de um olho só é cíclope, que representa, segundo o mesmo Cirlot, as forças primárias da natureza. Chevalier e Gheerbrant (Dicionário de Símbolos, Editora José Olympio, 2008) lembram outros significados mitologicamente ligados ao cíclope: força bruta, primitiva, vulcânica, regressiva, que escapa ao império do espírito, uma das representação dos ímpar, que simboliza a antiordem, o “esquerdo maldito”. Os mesmos autores, assim como Cirlot, lembram que na mitologia cristã o demônio é muitas vezes representado com um olho só, simbolizante da dominação das forças instintivas e passionais. Lembram ainda que a mitologia celta, que não tem cíclopes propriamente, tem uma galeria de personagens que representam o lado negro, titanesco, da criação, os poderes infernais, e que são caolhos ou tem um só braço, uma só perna (como o pai comprado do nosso protagonista). Os cíclopes são, na mitologia grega, manipuladores do fogo, assim como Hefesto, deus do fogo, e que é manco (o que, para Chevalier e Gheerbrant, tem a mesma simbologia do perneta dos celtas). A perna única e o olho único se ligam, na mitologia, como na obra de Mutarelli.

O advento desse olho é o ponto de ruptura da trama. E como tanto se pode interpretar esse olho como significando uma dádiva (a terceira visão) ou uma maldição (a filiação infernal), a ambiguidade do resto da trama encontra aí sua justificação.

O autor abre diversas linhas possíveis de evolução da história, e não fecha nenhuma delas. A história acaba, e acaba definitivamente, mas os mistérios continuam todos sem resposta, o que decepciona o leitor comum, e constitui um prêmio para o leitor curioso.

Tive a infelicidade de assistir o filme de mesmo título, depois de ter lido o livro. Lamentável que um livro repleto de camadas e símbolos, suscetível de várias leituras, tenha sido filmado como uma chanchada sem graça, um quase-pornô sem erotismo, um romance sem romantismo e um drama sem emoção.

O filme é de uma banalidade atroz e ainda bem que não o vi antes de ler o livro, senão deixaria de conhecer a obra do Mutarelli.

Mais lamentável ainda é que o autor do livro, em vez de renegar o filme, tenha aparecido nele como figurante.
ENCYCLOPAEDIA V. 51-0 (11/04/2016, 10h24m.), com 2567 verbetes e 2173 imagens.
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